segunda-feira, 26 de maio de 2014

Conhecendo um pouco mais!

O livro Alma Menina é uma ficção-relato que reúne histórias da própria autora, histórias de pessoas próximas e outras histórias de que um dia se ouviu falar, permeadas por contos de poética fantasia e amarradas com o cordão de uma narrativa ágil e direta.

Enquanto conta os acontecimentos da sua vida, a protagonista Mari escreve textos repletos de sensibilidade e poesia.

Confira abaixo um dos contos que integram a narrativa:

         Malia já estava andando há horas pela floresta, sem direção, quando repentinamente sentiu um cheiro bom, de incenso doce e ervas secas. Logo percebeu, em meios às árvores perto dali, grossos rolos de fumaça rosada que se elevavam ao céu.
       Aproximou-se devagar, escondendo-se atrás de arbustos. Encontrou uma mulher que, de costas para ela, remexia suavemente um caldeirão gigante que repousava sobre uma fogueira de chamas baixas.
       A mulher tinha longos e volumosos cabelos negros, enfeitados por pequeninas flores vermelhas. Usava uma saia comprida e colorida, bordada em fios dourados que brilhavam intensamente. A blusa branca de tecido fino deixavam desnudos os seus ombros bronzeados.
       Ela cantarolava palavras estranhas, que Malia não conseguia entender. A voz rouca e baixa parecia emanar mansamente das entranhas da terra, misturando-se à doce fumaça rosada que Malia aspirava, sem nem mesmo perceber. Aquela cantiga sedutora e melodiosa convidava-a a qualquer dança louca, inebriava-a, entorpecia seus sentidos...
       -Aproxime-se, criança – a voz falou, suavemente.
       Aquele chamado pareceu retumbar na mente de Malia, brando, mas poderoso e irresistível.
       Malia saiu de trás dos arbustos, pisando em nuvens. A mulher continuava a remexer o caldeirão, ritmadamente, como se dançasse, repetindo ainda as mesmas palavras de algum encantamento há muito aprendido. Ela não se virou quando Malia deixou seu esconderijo.
       -Venha, criança, não tenha medo – a voz disse mais uma vez.
       A menina continuava a mover-se vagarosamente, hipnotizada. Já estava a menos de três passos de distância quando a mulher deu a volta em seu caldeirão. Malia sentiu-se despertar quando pode, enfim, vê-la de frente.
       Mesmo muito tempo depois daquele encontro, Malia não saberia descrever exatamente o rosto que vira. Era bronzeado e tinha sobrancelhas finas e arqueadas, além de profundos olhos negros que pareciam falar. Mas, de verdade, foi o sorriso o que mais intrigou Malia.  Os fartos lábios cor de carmim guardavam dentes perfeitos e, só de vê-los, Malia poderia jurar que eles já haviam experimentado todos os sabores do mundo.
       -Pergunte o que quer perguntar, minha criança - disse a mulher, e Malia pode sentir um inconfundível aroma de canela quando ela pronunciou essas palavras.
       A menina não sentia medo, mas uma mistura de apreensão com encantamento. Não resistiu realmente a fazer a pergunta que martelava em sua cabeça.
       -Você é... uma bruxa?
       -E uma cigana – a mulher respondeu, acintosamente.
       -Uma bruxa cigana?!
       Uma risada leve, quase imperceptível, brincou no canto dos lábios da mulher quando ela esclareceu:
       -Não, meu bem... uma cigana bruxa.
       Malia pensou por alguns segundos, mas não soube encontrar sentido naquelas palavras. A cigana logo explicou:
       -Nasci cigana, a vida me fez bruxa.
       -Eu nasci menina, e a vida nada fez de mim - Malia respondeu, sem muito pensar.
       -A vida apenas apresenta os caminhos, criança. Suas pernas devem segui-los.
       Ela falava, sem nunca deixar de remexer seu caldeirão, com movimentos tão naturais que eram quase imperceptíveis. Dentro dele, borbulhava uma mistura de aparência cremosa e cada vez mais fumacenta. O aroma adocicado já era quase sufocante.
       -O que é isso? - perguntou Malia, pondo-se na ponta dos pés para espiar dentro do caldeirão, mas tomando cuidado para não aproximar-se muito dele.
       -É um cozido de paixões.
       -E para que serve?
       -Para inebriar os desafortunados que não conhecem a intensidade das paixões desse mundo.
       -Eu não sei nada de paixões - Malia respondeu - mas não acho que eu seja uma desafortunada por isso.
       Se Malia tivesse prestado atenção, talvez teria notado um leve arquear de sobrancelhas da cigana ao ouvir aquela resposta.
       De fato, Malia só conhecia a paixão dos livros, e achava tudo aquilo uma grande bobagem. Paixões ardentes e enlouquecidas, mas irremediavelmente arquitetadas por quem as escrevia, encerradas em páginas amarelecidas de livros velhos. Paixões invariavelmente condenadas à morte, se não pelas ações dos personagens, pela pena de quem as escrevia.
       A verdade era que Malia não tinha vontade alguma de conhecer uma paixão assim, com data para acabar, mesmo que fosse pelo encantamento de uma bruxa.
       -O que eu queria mesmo era uma paixão sem final - a garota disse por fim,talvez esperando que a cigana pudesse ter perscrutado seus pensamentos.
       A mulher descansou o bastão com o qual remexia o caldeirão fumegante e, com um leve gesto, apagou as chamas sobre o qual ele repousava.
       -Deixe-me ler sua mão, minha querida - disse ela brandamente, aproximando-se de Malia.
       A menina teve medo, mas sentiu-se impelida a obedecer.
       Com sua longa unha pintada de dourado, a cigana riscou delicadamente a palma rosada. Malia continha a respiração, enquanto aguardava a compreensão daquela alma que lia o mundo. Depois de alguns segundos sem nada dizer, a cigana fitou a menina com seu olhar inquisitivo de sapiência muito antiga. Pousou a mão em concha sobre a mão que Malia lhe estendia e, por fim, fechando os olhos, murmurou um encantamento curto.
       Malia sentiu um leve peso na palma da mão. Quando a cigana soltou-a, ele pode ver uma pequenina semente azulada. Aproximou-a dos olhos para enxergá-la melhor, curiosa:
       -O que é isso?
       -Um presente: a semente de um sentimento eterno. Um sentimento que vive do seu próprio existir, germinando nos corações dos humildes e enraizando-se nas almas puras.
       Malia não entendeu bem. Ainda segurando a semente bem próxima aos olhos, perguntou, desconfiada:
       -E por acaso existe paixão assim?
       A cigana pegou novamente a mão de Malia, fazendo-a apertar com firmeza a semente, como se lhe entregasse um tesouro. Sorriu um último sorriso cintilante, respondendo antes de desaparecer em meio a fumaça rosada e a chamas que não ardiam:
       -Não, minha menina. O nome disso é amor.

sábado, 12 de janeiro de 2013

Prólogo


       Anoitecia, e a temperatura já havia caído muito, como é comum acontecer nos finais de tarde de outono. Tons de cinza cobriam o céu, mas alguns esparsos resquícios alaranjados de sol ainda podiam ser vistos por entre os prédios altos da avenida. Àquela hora, eu já deveria estar a caminho da faculdade, mas não tivera ânimo de enfrentar o ônibus cheio e o trânsito pesado. Também não tivera coragem de ir para casa, e isso me amargurava. Se eu não tinha vontade de voltar para a minha própria casa, então para que lugar eu poderia ir? De verdade, o que eu queria mesmo era apagar às vistas do mundo.
       Continuei caminhando lentamente pela rua movimentada, de cabeça baixa, com o rosto oculto pelo capuz e as mãos enterradas nos bolsos da blusa de lã cinzenta. Reparei no shopping que havia logo do outro lado da avenida. Eu não tinha qualquer dinheiro para gastar lá dentro, mas poderia passar o tempo até decidir o que fazer.
       O lugar estava apinhado de gente: pessoas recém-saídas do trabalho, casais, crianças passeando com os pais. Gente feliz, ao menos aparentemente mais que eu. Ao longo dos corredores, havia grandes bancos de madeira, escuros e com encosto alto. Sentei-me em um deles, em frente a uma loja de instrumentos musicais. Observei enquanto vendedores tiravam dúvidas de pessoas que testavam teclados e guitarras. Lembrei-me da vontade antiga de aprender a tocar algum instrumento. Vontade que ficara para trás, longe, memória antiga perdida na estrada para São Paulo.
       Eu gostava mesmo era de escrever, e as palavras eram instrumentos que eu tentava aprender a manejar sozinha. Sozinha e escondida, sem nunca ter contado isso a quem quer que fosse. Sempre temi julgamentos. “Poesia parece horóscopo”, dizia com frequência minha prima Lili, rindo despreocupadamente. “Sempre tem um jeito de relacionar com a vida da gente”. Eu ria também, sem me atrever a contar o quanto eu gostava daquilo.
       O panorama na loja de instrumentos não mudava muito, e logo me cansei. Tirei, então, o caderno e uma caneta da mochila e comecei a rabiscar as ideias:

       O sol nascente trazia a neblina gelada que a tudo encobria em medo e aflição. Os ponteiros tortos de sua bússola quebrada apontavam para todos os Nortes da salvação que só a eternidade prometia. Seus passos gastos rangiam sobre o assoalho frio de um desfiladeiro escuro, enquanto lembranças cinzentas e sonhos descorados rodopiavam frouxamente por sua mente desprezada. Queria ela que aquele emaranhado de caminhos úmidos e enegrecidos a levassem ao desencantado fim.
       O fim...
     
       Pensei por longos minutos, mas todas as palavras que eu encontrava para continuar me davam medo. Eu mesma não via nada além do fim. Deixei minha cabeça descansar no encosto do banco, o olhar perdido em algum ponto do teto luminoso, mal percebendo quando alguém se sentou ao meu lado. Foi só quando a pessoa falou comigo que realmente notei que havia alguém ali.
       -Não sei o que está acontecendo, mas vai passar.
       Eu me surpreendi. Lancei os olhos sobre aquela figura e vi um homem que devia ter seus trinta anos, de terno e gravata, cabelos pretos e fartos e olhos sinceros. Estava um pouco fora de forma, é verdade, e sua aparência não era a de alguém que normalmente me chamaria a atenção. Mas algo que li em seu olhar me fez sorrir, embora o sorriso fosse triste. Ele me olhou sério, e meus olhos não suportaram a força dos dele. Baixei a cabeça para evitar a fuga de uma lágrima.
       Ele continuou falando, em tom de quem consola uma criança:
       -Sempre passa.
       Eu não ousei abrir a boca, apenas concordei com a cabeça.
       -Não quer conversar? Vamos descer até a praça de alimentação e tomar um café.
       Confesso que não cheguei a pensar muito na estranheza daquele encontro, nem daquela proposta, antes de concordar. Que mal havia? Ali dentro, nada de tão ruim poderia mesmo acontecer. Assenti com um gesto, guardando rapidamente o caderno e a caneta de volta na mochila.
       Descemos a escada rolante em silêncio, o silêncio mais constrangido que eu já pudera sentir. Na verdade, acho que única constrangida era eu. O homem parecia muito tranquilo, observando-me com seus grandes olhos escuros. Eu não conseguia pressentir que tipo de intenção ele tinha, mas evitava encará-lo.
       Na cafeteria, pedi um chá gelado com limão, e ele, um café. Ele não me deixou pagar.
       -Fui eu quem te convidei – disse sorrindo, quando fiz menção de pegar o dinheiro na mochila.
       Eu não fiz objeção. Não estava realmente em condições de ter qualquer gasto imprevisto.
       Sentamos em uma das mesas da praça de alimentação, bem movimentada naquele frio início de noite de terça-feira. Foi ele quem falou primeiro:
       -Como você se chama?
       -Maripaz.
       -Lindo nome! É tão diferente!
       -É sim... mas pode me chamar só de Mari, se preferir.
       -Como você prefere?
       -Tanto faz.
       Ele não disse nada. Acho que ficou esperando uma pergunta que não veio. Então ele falou:
       -Meu nome é Sérgio.
       -Você trabalha por aqui?
       -Na verdade, não. Vim até aqui hoje apenas para uma reunião. E você?
       -Eu devia estar na faculdade agora. Estou matando aula.
       -Que coisa feia – ele disse sorrindo, meneando a cabeça.
       Eu não sorria.
       -Estou pensando em trancar, na verdade.
       Era a primeira vez que eu contava aquilo para alguém. Verbalizar aquele pensamento que há tempos me espreitava fez com que ele parecesse mais plausível, mas muito mais sombrio ao mesmo tempo.
       -É por isso que está triste?
       Eu abri a boca para dizer que não, não era só por isso, e senti meus olhos arderem e minha face esquentar. Temi que com as palavras viesse uma enxurrada de lágrimas. Não consegui falar nada, mas ele não esperou a resposta.
       -Quantos anos você tem?
       -Faço vinte e um na próxima semana.
       -É mesmo? Parece menos.
       Eu sabia que ele não dizia aquilo por educação. Estava sendo sincero, como todos os que já haviam me dito aquelas palavras. Eu odiava que me enxergassem como uma criança e, naquele momento,odiei também aquele estranho, por me enxergar como todos os outros. Não havia mesmo porque esperar que ele fosse diferente.
       Franzi as sobrancelhas e fiquei quieta, concentrada no canudo que flutuava dentro do meu copo de chá. O café de Sérgio já havia terminado.
       O que aconteceu logo em seguida foi extremamente impensado da minha parte, provavelmente não da parte dele. Como eu disse, o café de Sérgio já havia terminado. Eu me apressei em tomar o chá. Estava começando a me sentir realmente desconfortável e queria ir embora dali.
       Coloquei o copo vazio em cima da mesa e estendi a mão:
       -Foi um prazer, mas tenho que ir embora.
       -Eu te acompanho.
       Levantamos os dois da mesa. Ele me tomou pelo braço, gentil, mas firmemente, e tomamos os rumos das escadas rolantes.
       -A saída de pedestres é aqui nesse andar mesmo – protestei, com pouca veemência.
       -Meu carro está no estacionamento, lá em cima.
       -Eu vou embora sozinha.
       Ele não respondeu. Eu podia ter corrido, fugido, gritado, mas não fiz nada. Em silêncio, deixei que aquele desconhecido me conduzisse pelos pisos do shopping. Pela primeira vez na vida, eu estava sendo inconsequente.

domingo, 23 de dezembro de 2012



Alma Menina é a história de Mari, uma garota simples, cercada por coisas simples: trabalho, família, faculdade, namorado. Tudo muito simples, simples demais. Tão simples, que Mari pensa não existir espaço em sua vida para sonhos e cores. Assim, pouco a pouco, a garota vai se extinguindo num mundo simples que tem pressa, muita pressa. Lentos são, apenas, os passos que a levam até o abismo. E é ali, espreitando com desconfiança a beirada do precipício, que um encontro muito imprevisto com um homem nada simples faz Mari ter certeza: já era hora de pular.

A página do livro ainda está em construção.

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