sábado, 12 de janeiro de 2013

Prólogo


       Anoitecia, e a temperatura já havia caído muito, como é comum acontecer nos finais de tarde de outono. Tons de cinza cobriam o céu, mas alguns esparsos resquícios alaranjados de sol ainda podiam ser vistos por entre os prédios altos da avenida. Àquela hora, eu já deveria estar a caminho da faculdade, mas não tivera ânimo de enfrentar o ônibus cheio e o trânsito pesado. Também não tivera coragem de ir para casa, e isso me amargurava. Se eu não tinha vontade de voltar para a minha própria casa, então para que lugar eu poderia ir? De verdade, o que eu queria mesmo era apagar às vistas do mundo.
       Continuei caminhando lentamente pela rua movimentada, de cabeça baixa, com o rosto oculto pelo capuz e as mãos enterradas nos bolsos da blusa de lã cinzenta. Reparei no shopping que havia logo do outro lado da avenida. Eu não tinha qualquer dinheiro para gastar lá dentro, mas poderia passar o tempo até decidir o que fazer.
       O lugar estava apinhado de gente: pessoas recém-saídas do trabalho, casais, crianças passeando com os pais. Gente feliz, ao menos aparentemente mais que eu. Ao longo dos corredores, havia grandes bancos de madeira, escuros e com encosto alto. Sentei-me em um deles, em frente a uma loja de instrumentos musicais. Observei enquanto vendedores tiravam dúvidas de pessoas que testavam teclados e guitarras. Lembrei-me da vontade antiga de aprender a tocar algum instrumento. Vontade que ficara para trás, longe, memória antiga perdida na estrada para São Paulo.
       Eu gostava mesmo era de escrever, e as palavras eram instrumentos que eu tentava aprender a manejar sozinha. Sozinha e escondida, sem nunca ter contado isso a quem quer que fosse. Sempre temi julgamentos. “Poesia parece horóscopo”, dizia com frequência minha prima Lili, rindo despreocupadamente. “Sempre tem um jeito de relacionar com a vida da gente”. Eu ria também, sem me atrever a contar o quanto eu gostava daquilo.
       O panorama na loja de instrumentos não mudava muito, e logo me cansei. Tirei, então, o caderno e uma caneta da mochila e comecei a rabiscar as ideias:

       O sol nascente trazia a neblina gelada que a tudo encobria em medo e aflição. Os ponteiros tortos de sua bússola quebrada apontavam para todos os Nortes da salvação que só a eternidade prometia. Seus passos gastos rangiam sobre o assoalho frio de um desfiladeiro escuro, enquanto lembranças cinzentas e sonhos descorados rodopiavam frouxamente por sua mente desprezada. Queria ela que aquele emaranhado de caminhos úmidos e enegrecidos a levassem ao desencantado fim.
       O fim...
     
       Pensei por longos minutos, mas todas as palavras que eu encontrava para continuar me davam medo. Eu mesma não via nada além do fim. Deixei minha cabeça descansar no encosto do banco, o olhar perdido em algum ponto do teto luminoso, mal percebendo quando alguém se sentou ao meu lado. Foi só quando a pessoa falou comigo que realmente notei que havia alguém ali.
       -Não sei o que está acontecendo, mas vai passar.
       Eu me surpreendi. Lancei os olhos sobre aquela figura e vi um homem que devia ter seus trinta anos, de terno e gravata, cabelos pretos e fartos e olhos sinceros. Estava um pouco fora de forma, é verdade, e sua aparência não era a de alguém que normalmente me chamaria a atenção. Mas algo que li em seu olhar me fez sorrir, embora o sorriso fosse triste. Ele me olhou sério, e meus olhos não suportaram a força dos dele. Baixei a cabeça para evitar a fuga de uma lágrima.
       Ele continuou falando, em tom de quem consola uma criança:
       -Sempre passa.
       Eu não ousei abrir a boca, apenas concordei com a cabeça.
       -Não quer conversar? Vamos descer até a praça de alimentação e tomar um café.
       Confesso que não cheguei a pensar muito na estranheza daquele encontro, nem daquela proposta, antes de concordar. Que mal havia? Ali dentro, nada de tão ruim poderia mesmo acontecer. Assenti com um gesto, guardando rapidamente o caderno e a caneta de volta na mochila.
       Descemos a escada rolante em silêncio, o silêncio mais constrangido que eu já pudera sentir. Na verdade, acho que única constrangida era eu. O homem parecia muito tranquilo, observando-me com seus grandes olhos escuros. Eu não conseguia pressentir que tipo de intenção ele tinha, mas evitava encará-lo.
       Na cafeteria, pedi um chá gelado com limão, e ele, um café. Ele não me deixou pagar.
       -Fui eu quem te convidei – disse sorrindo, quando fiz menção de pegar o dinheiro na mochila.
       Eu não fiz objeção. Não estava realmente em condições de ter qualquer gasto imprevisto.
       Sentamos em uma das mesas da praça de alimentação, bem movimentada naquele frio início de noite de terça-feira. Foi ele quem falou primeiro:
       -Como você se chama?
       -Maripaz.
       -Lindo nome! É tão diferente!
       -É sim... mas pode me chamar só de Mari, se preferir.
       -Como você prefere?
       -Tanto faz.
       Ele não disse nada. Acho que ficou esperando uma pergunta que não veio. Então ele falou:
       -Meu nome é Sérgio.
       -Você trabalha por aqui?
       -Na verdade, não. Vim até aqui hoje apenas para uma reunião. E você?
       -Eu devia estar na faculdade agora. Estou matando aula.
       -Que coisa feia – ele disse sorrindo, meneando a cabeça.
       Eu não sorria.
       -Estou pensando em trancar, na verdade.
       Era a primeira vez que eu contava aquilo para alguém. Verbalizar aquele pensamento que há tempos me espreitava fez com que ele parecesse mais plausível, mas muito mais sombrio ao mesmo tempo.
       -É por isso que está triste?
       Eu abri a boca para dizer que não, não era só por isso, e senti meus olhos arderem e minha face esquentar. Temi que com as palavras viesse uma enxurrada de lágrimas. Não consegui falar nada, mas ele não esperou a resposta.
       -Quantos anos você tem?
       -Faço vinte e um na próxima semana.
       -É mesmo? Parece menos.
       Eu sabia que ele não dizia aquilo por educação. Estava sendo sincero, como todos os que já haviam me dito aquelas palavras. Eu odiava que me enxergassem como uma criança e, naquele momento,odiei também aquele estranho, por me enxergar como todos os outros. Não havia mesmo porque esperar que ele fosse diferente.
       Franzi as sobrancelhas e fiquei quieta, concentrada no canudo que flutuava dentro do meu copo de chá. O café de Sérgio já havia terminado.
       O que aconteceu logo em seguida foi extremamente impensado da minha parte, provavelmente não da parte dele. Como eu disse, o café de Sérgio já havia terminado. Eu me apressei em tomar o chá. Estava começando a me sentir realmente desconfortável e queria ir embora dali.
       Coloquei o copo vazio em cima da mesa e estendi a mão:
       -Foi um prazer, mas tenho que ir embora.
       -Eu te acompanho.
       Levantamos os dois da mesa. Ele me tomou pelo braço, gentil, mas firmemente, e tomamos os rumos das escadas rolantes.
       -A saída de pedestres é aqui nesse andar mesmo – protestei, com pouca veemência.
       -Meu carro está no estacionamento, lá em cima.
       -Eu vou embora sozinha.
       Ele não respondeu. Eu podia ter corrido, fugido, gritado, mas não fiz nada. Em silêncio, deixei que aquele desconhecido me conduzisse pelos pisos do shopping. Pela primeira vez na vida, eu estava sendo inconsequente.